sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

Um Sonho para aquecer um dia frio

Pelo Sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos?
Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo Sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia-a-dia.

Chegamos?
Não chegamos?
Partimos.
Vamos.
Somos.

Sebastião da Gama

terça-feira, 23 de janeiro de 2007

O Referendo de 11 de Fevereiro

Como todos sabemos ou deveríamos saber, no próximo dia 11 de Fevereiro os portugueses serão novamente chamados a cumprir o seu dever cívico de votar. Desta vez trata-se de uma auscultação nacional através de um processo politicamente designado por Referendo. Segundo o que se pode ler na página da Wikipédia, na Internet “Referendo é um instrumento de democracia directa por meio do qual os cidadãos eleitores são chamados a pronunciar-se por sufrágio directo e secreto, a título vinculativo, sobre determinados assuntos de relevante interesse nacional. Em Portugal ocorre mediante proposta da Assembleia da República, ou do Governo, e é o Presidente da República quem decide da sua realização”. Entre nós já se realizaram dois destes escrutínios. O primeiro foi efectuado em Junho de 1998 e pretendia obter uma resposta, positiva ou negativa, à seguinte pergunta: "Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas 10 primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?" 68% dos portugueses recusaram-se a votar, não lhes apeteceu ir à assembleia de voto ou abstiveram-se evitando assim fazer uma opção sobre assunto. Os que lá foram deram uma escassa vitória ao Não. Em Novembro do mesmo ano, com uma abstenção igual à do anterior, realizou-se o referendo sobre a regionalização. Novamente os restantes portugueses deram uma vitória clara ao Não. Em ambos os casos, contudo, a maior vitória foi a da abstenção, aliás um mau costume que começa a marcar todas as nossas votações. Das três, uma: ou nós estamos nas tintas para os referendos, ou não percebemos para que é que eles servem ou, pior, e pensando nas outras eleições, já não acreditamos nos políticos. A pergunta a que vamos ter que responder no próximo dia 11 é exactamente a mesma que nos foi feita em Junho de 1998. Tenho uma secreta esperança que desta vez a abstenção seja menor. Há uma grande camada de juventude, que então ainda não podia votar, e que é particularmente sensível à questão posta. Julgo que essa gente o fará agora. Uma coisa porém tem vindo a preocupar-me nestes últimos dias, período destinado a uma coisa que deveria ser o do “esclarecimento” popular. A apropriação do Sim e do Não pelos diferentes partidos tem partidarizado tanto esta discussão que mais parece que o que temos de fazer é a escolha de um programa e não o dar uma resposta que, sendo do interesse público, é do âmbito da justiça e não da política. Os defensores de cada uma das opções digladiam-se de tal forma na praça pública e nas sessões informativas que, em vez de ajudar, lançam mais confusão nas cabeças ainda hesitantes. Assisti há dias a parte de uma sessão de debate (por motivos pessoais tive de sair antes que ela acabasse) em que os adeptos de cada uma das posições usavam as mesmas expressões e a fórmula retórica das campanhas políticas. Aliás o próprio Primeiro-ministro deu o exemplo ao assumir e apregoar publicamente a sua escolha. Como cidadão tem todo o direito de o fazer. Considerando o cargo que ocupa e para a qual o foi eleito pelo país, deveria ter sido mais contido ou pelo menos tão discreto quanto o foi Guterres em 1998, para evitar possíveis influências sobre os votantes. Não percebo nada de política. Talvez por isto a declaração pública do Eng. Guterres me cheire demasiado a eleitoralismo fácil, mesmo à distância a que estão as próximas eleições. Mas que ele vai tirar da manga esse trunfo se a sua escolha for a que ganhar, é garantido. Este referendo precisava de ser melhor tratado. O que nos é pedido deve ser muito bem pesado e por isso carece de informação jurídica, ética e científica mais profunda e não de debates políticos. Jurídica, porque a confusão é tanta que, se fizermos um inquérito de rua, vamos concluir que muitas pessoas pensam que o que se pretende é saber se somos a favor ou contra o aborto, quando o que se pede é a despenalização da sua prática em função dos critérios formulados na pergunta. Haveria pois que explicar o que quer dizer esta palavra. Ética, porque se trata de um assunto do foro íntimo de cada um de nós e por isso precisamos que o silêncio da nossa reflexão não seja quebrado pelo ruído das palavras de ordem e dos cartazes de rua. Científica, porque a maior parte das discussões vai parar ao mesmo sítio – “há ou não vida humana antes das 10 primeiras semanas de gravidez?” ponto fulcral da hesitação de muita gente e sobre o qual as respostas dos defensores de ambas opções nunca são coincidentes e portanto nada esclarecedoras.
Esperemos que o dia 11 seja de honestidade e bom senso e que a opção vitoriosa seja clara e indiscutível. Receio grandemente o Nim, que é a posição dos que se abstêm e dos desligados do que acontece neste país.

domingo, 21 de janeiro de 2007

Porque gosto de viver em Matosinhos


Desiludam-se se estão à espera que eu vá falar do desenvolvimento urbanístico, cultural, económico, social e todas as outras coisas que fazem de uma cidade um local com qualidade ou que vá tecer elogios ou críticas a quem gere este espaço de duas freguesias que tem por nome Matosinhos. Vivo na freguesia que dá o nome à cidade e o meu gosto por viver aqui está baseado pura e essencialmente num enorme egoísmo pessoal. Descobri que Matosinhos me serve como um sapato confortável, daqueles que se calçam à primeira e não apertam os calos. Aqueles que nos apetece usar todos os dias e de que nos custa desembaraçar quando já estão cambados e gastos. Podem dizer-me que Matosinhos está assim: cambado e gasto. É natural. Talvez por isso mesmo esta terra me serve tão bem.
Nunca cresci noutro lado. A quase totalidade de recordações da minha vida está aqui. Assisti a todas as mudanças que ela sofreu nos últimos 60 anos. Como sei o que mudou e como mudou, as minhas memórias foram-se adaptando visualmente (que não emocionalmente, por vezes – ex.: a Praia do Titã) e não sofreram nenhum choque fatal ou me levaramm a perder-me ao percorrer estas ruas. O mesmo não acontece com outros sítios em que estive circunstancialmente e que resolvi revisitar – todas as vezes que o tentei não consegui reconhecer a imagem que deles guardava.
Os que vivemos no núcleo-interior de Matosinhos (será abuso chamar-lhe baixa?) de um modo geral todos nos conhecemos ou conhecemos alguém que conhece os outros, sabemos onde moram e os nossos filhos andaram nas mesmas escolas e liceus (desculpem-me: Escolas Secundárias). Se nos acontecer alguma coisa, tipo desmaiar na rua, com facilidade aparece alguém que nos identifica e avisa a família. E muitos de nós conservam os nomes por que nos reconheciam em criança. Já me aconteceu mais de uma vez telefonar para um local, dizer o meu nome e, ao não ser reconhecida, ter de explicar: “sou a Isabelinha, a da Sultana”. Para uma sexagenária, nada mau!
Nesta zona demarcada de Matosinhos os seus moradores andam geralmente a pé porque descobriram que é a forma mais rápida de chegarem aos sítios, dada a dificuldade de estacionamento (refiro-me ao legal e ao ilegal). Este pormenor é não só agradável, porque se podem ver as montras (sobretudo as dos chineses e as das lojas dos 300), como até saudável porque a marcha só faz bem. E isto é possível porque nesta terra é tudo perto. Às vezes não temos perfeitamente essa noção porque nos moldaram na dependência dos Shoppings e nos ofereceram um Metro que nos põe no centro do Porto, sem problemas e muito confortavelmente, em 30m.
Depois de uma recolha de cerca de um mês em casa, em que estive dependente da ajuda ímpar do meu marido, que se desdobrou para me resolver a vida, passei à situação de semi-recolha, o que significa que me foi autorizado sair, mas sem fazer grandes caminhadas, pegar em pesos ou esforços similares. Ao retomar o controlo da minha vida, se bem que com as tais limitações, descobri então o verdadeiro porquê de gostar de viver em Matosinhos. Num raio de 75m, contados a partir de minha casa, eu tenho acesso a um número enorme de serviços fundamentais: farmácia, talho, mercearia, confecções, retrosaria, confeitaria, tabacaria, clube de vídeo, casas de confecções, cabeleireiro, esteticista, etc., etc., etc. E com a vantagem de ser atendida de forma simpática, até familiar. A igual distância tenho ainda a Câmara, as Finanças e a Biblioteca. E pouco mais longe, a Polícia e os serviços Municipalizados
Podem dizer-me que o comércio local está desactualizado e as ruas estreitas, os passeios em mau estado, os edifícios pouco arranjados. É verdade. Mas está tudo funcional e à mão, desculpem-me, ao pé. Isso facilita tremendamente a vida dos moradores, sobretudo daqueles que por qualquer razão se deslocam com alguma dificuldade.
Compreendem agora porque razão eu comecei por dizer que o meu gosto por viver em Matosinhos é uma questão de puro egoísmo?

quarta-feira, 17 de janeiro de 2007

Porque a vida é uma viagem de aventura em busca incessante do paraíso...


Viagem

Aparelhei o barco da ilusão

E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).

Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.

Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.

Miguel Torga - 1962

quinta-feira, 11 de janeiro de 2007

Para quantos a música é poesia

Da música caíram letras

Altas
Redondas
Deitadas
Curvas
Pontiagudas
Ligeiras
Esvoaçantes
Rodopiaram
E fugiram pelo chão

Apanhei-as
Juntei-as
Baralhei-as
Atirei-as ao ar
Guardei-as no meu colo

E nasceram palavras
Soltas
Livres
Sem elos
Sem sentido


Envolvi-as
Com luz
Som
Acção
Amor
Desespero
Paixão
Vontade
Gestos de vida

Misturei-lhes
Movimento
Ritmo
Cheiro de flores
Cantar dos pássaros
Murmúrio do mar

Acabei-as com um bocadinho de mim
E nasceu poesia

ILago



terça-feira, 9 de janeiro de 2007


O sol acordou,
Bocejou
e afastou uma nuvem que passava.
Espreitou tímido os telhados da cidade.
Levantou a cabeça
e piscou os olhos à lua que lá no céu se despedia da noite.
Espreguiçou-se de mansinho sobre a praia
e na ponta de cada raio brilharam as gaivotas que voavam sobre o mar.
IM

segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

AS SERRAS DE EÇA DE QUEIRÓS - TORMES



Visitar Tormes, que só existe na ficção de Eça, significa visitar Santa Cruz do Douro. Nesta freguesia sobre o Douro, fica a Quinta de Vila Nova, sede da Fundação Eça de Queiroz e aqui se pode desfrutar o cenário das verdadeiras e legítimas Serras do romance queirosiano. Se lá chegarmos de comboio, iremos sair na mesma estação (cujo verdadeiro nome é Aregos, nome do lugar onde ela fica). E, os que tiverem a coragem de fazer a caminhada a pé até à Fundação, reconhecerão muitos dos locais referidos no romance e sentirão saudades de uma égua ruça ou de um jumento para trepar por aquele caminho de cabras que sobe desde o rio. Vou deixar-vos aqui sugestões de roteiros. Coragem e releiam A Cidade e as Serras.


Roteiro de comboio: A saída será do Porto S. Bento ou Campanhã. Decorre através de uma zona de fartos vinhedos e interessantes povoações. E quando chegarem à Pala ficarão extasiados com a magnífica vista do desaguar do rio Bestança (dizem que o menos poluído da Europa) no Douro, dentro da albufeira do Carrapatelo. Como a estação de Tormes (oficialmente lembrem-se que se chama estação de Aregos), que é a mais próxima da Fundação Eça de Queirós, não possui praça de táxis, uma jornada a partir dali é difícil pois de lá a Tormes sobe que se farta e ainda são uns Kms. Se sairem na estação de Mosteiró, a anterior a Aregos , têm táxis que vos poderão levar à Fundação fazendo uma passagem na estação onde o Eça ou o Jacinto desembarcavam. Não fica muito mais caro porque é um dos percursos dos taxistas. Mas o melhor será mesmo irem de comboio até à Ermida. De Mosteiró até lá a viagem é feita a poucos metros da água, parecendo-nos, por vezes, que o comboio ali vai mergulhar. Na Ermida poderão almoçar principescamente no restaurante Barriga Farta/Casa da Venda. Para fazerem a digestão tomem um táxi no local e a poucos Kms. terão a Fundação Eça de Queirós cuja casa museu é digna de uma visita. Com um pouco de sorte poderão encontrar a presidente daquela Instituição e viúva de um dos netos do escritor, que foi o último herdeiro da casa, Snra. D. Maria da Graça. O táxi que vos levou terá de esperar para vos colocar de novo na Estação da Ermida. Não se esqueçam de consultar os horários da CP para programarem os vossos tempos. Boa viagem e depois contem-me.


Roteiro rodoviário:A viagem faz-se pela A4 . Na placa 14 saiem para o Marco de Canaveses. Não entram no Marco (a não ser que queiram ir visitar a Igreja de S. Maria, do Siza Vieira) e seguem em direcção a Baião pela nova circular que vai até Campelo (Baião só existe como concelho. A sua sede é Campelo). Para entrarem no centro viram à esquerda na rotunda onde acaba a via circular. Aconselho-vos a almoçar aí. Têm várias opções. Sugiro-vos a Pensão Borges, na Rua de Camões. Esta rua é aquela por onde vão entrar. Qualquer pessoa vos indicará a sua localização. Escolham um dos diferentes menus queirosianos e terão oportunidade de verificar o respeito não só pelo cliente como pela gastronomia portuguesa, neste caso sugerida pela obra do nosso maior escritor. Se quiserem reservar antecipadamente aqui vai o telefone: (255) 541322.Depois de almoço saiam para a Fundação Eça de Queirós, em S. Cruz do Douro, pela estrada que vai em direcção a S. Marinha do Zêzere. No alto da serra, quando encontrarem a placa que indica a Fundação, sigam-na, virando à direita. A partir daí o vosso caminho será traçado por placas idênticas. Usufruam plenamente da paisagem. Tenho uma amiga francesa que quando entra na descida da serra e vê todo o vale até ao rio, à sua frente, me diz: “Quando é que este avião aterra?”. Quando a estrada terminar, viram à esquerda e seguem pela EN-108 (antiga estrada da Régua). Em breve encontrarão, do vosso lado direito, a placa da Fundação de Tormes. Podem levar o carro até à casa, que fica a uns 500m da estrada. O resto é convosco

Como se perdeu todo o conteúdo do meu outro blog, o voo da gaivota, estou agora a recompor os estragos. Por isso só hoje posso aqui deixar registadas para que se não percam as minhas mensagens de Natal e Ano Novo para todos os amigos. E como Natal é sempre que o homem quiser e o 2007 ainda só tem oito dias, até que não fica muito deslocado:

Natal 2006


Se eu pudesse
Refaria o Natal
Tirava-lhe o acessório:
Todo o som e toda a luz
As prendas, as correrias
Os almoços e jantares
Abraços ao faz de conta…

O meu Natal só teria
Um Presépio ou o Menino
Posto num sítio de paz,
Aquecido com amor
E iluminado d’ esperança.
E só o poderia ver
Quem ainda se lembrasse
Que um dia já foi criança.


ANO NOVO 2007

Brindar porquê
Nesta noite
Que apaga 2006?
Lembrando o que nos ficou
Deste tempo que acabou?
Coisas boas,
Coisas más?
Toda a avaliação
Depende do que gozámos.
Ou então do que amargámos.
Aí entra o coração
E o nosso corpo também.
Em todo o caso, brindemos
Pois se chegamos aqui
É sinal de que vivemos.

Um novo ano começa
Brindar a ele porquê?
Nem se quer se antevê
O que ele pode trazer.
Mas brindemos mesmo assim.
É sempre um tempo d’esperança
O espaço tão fugaz
Do bater das badaladas.
Usemo-lo para fazer
Com cada passa um pedido.
Comecemos na saúde,
Passemos pelos afectos
E acabemos na Paz.

Isabel Lago

A OUSADIA DA GAIVOTA

Naquele dia a gaivota acordou com um espírito novo. Abriu os olhos, sacudiu a penugem e espreguiçou as asas. Não viu a mãe, a Gaivota Maria (todas as gaivotas são Marias porque este nome começa por mar). A seu lado apenas as duas irmãs que ainda dormiam. Respirou fundo e olhou os primeiros raios do sol da manhã. Sentiu uma felicidade imensa que lhe alimentou a alma (ou lá o que as gaivotas têm em vez de alma). Na véspera, finalmente, conseguira acompanhar a mãe num voo sobre o extenso areal onde nascera. Até olhara algumas vezes para baixo sem sentir vertigens. Como seria ir mais longe? Que lhe aconteceria se saísse do espaço limitado da praia e se aventurasse a dar sozinha uma volta pelo grande passeio ainda sem gente àquela hora? A ideia de ser a primeira da ninhada a fazê-lo animou-a. Olhou para as casas altas do outro lado da avenida. Certamente não seria difícil alcançá-las pois, durante o voo da véspera, elas lhe pareceram estar bem perto. E que admiradas e invejosas ficariam as irmãs quando lhes contasse a sua proeza! Sentiu que merecia fazê-lo porque, afinal, ela fora a única que aguentara acompanhar a mãe no dia anterior. Ah! A mãe! A reacção dela é que era a grande dúvida. Será que iria ficar orgulhosa dela ou, pelo contrário, a iria castigar? Um formigueiro estranho percorreu-a toda. Tinha de ir. Precisava de provar a ela própria que era capaz. Devagarinho começou a caminhar na areia. Espreitou as irmãs e o resto da colónia de gaivotas. Ajudada pelo vento, sacudiu as asas e… levantou voo. Primeiro baixinho para ver como se sentia. O ar fresco da manhã afagou-a. Esqueceu-se dos medos e das dúvidas e subiu mais. Depressa chegou ao grande passeio. Olhou para o cimo das casas. Vistas dali de perto pareciam bem mais altas do que da areia. Será que ia conseguir chegar lá acima? Pela primeira vez hesitou. Desceu planando e parou em cima de um muro enorme que entrava pelo mar dentro e a que a mãe chamava molhe. Que engraçado que era! Lá de cima e de longe as irmãs e as outras gaivotas pareciam-lhe pequenas bolas prateadas brilhando ao sol. Da mãe, nem sinal. Ficou mais descansada e decidiu continuar. Olhou novamente para as casas altas e avaliou as suas possibilidades de as atingir. Francamente não lhe pareceram muitas. Teria que escolher um local mais para a idade dela. Num pequeno voo subiu para um pilar de uma das obras. Era alto, mas bem mais baixo que os postes que à noite iluminavam toda a avenida. Digamos que era um sítio confortável e para primeiro voo em solitário era mesmo um grande feito. Olhou à sua volta e pensou que realmente as tais casas altas ainda não eram para as suas asas. Mas lá que gostaria de dizer às irmãs que já estivera em cima de uma, isso era verdade. E inchou de alegria ao pensar nos bicos abertos de espanto quando ela lhes contasse as novidades. Tornou a olhar. Para além das casas muito altas, havia outras menos altas e algumas baixas. Decidiu-se por estas. Não tinha muito por onde escolher. Uma chamou-lhe especialmente a atenção. Era diferente das outras porque a parte superior era redonda, com uma casa pequenina também redonda em cima e as paredes não tinham portas. Até poderia voar lá dentro e atravessá-la em todas as direcções. Não pensou duas vezes. Arrancou e voou, voou, voou, subindo devagar. Subir custava-lhe ainda um bocadinho. Cansava-a. Pensou em desistir, mas a lembrança do que poderia dizer às irmãs deu-lhe forças e, pouco depois, chegou lá acima. Quando ia pousar atrapalhou-se toda. Aprendera a fazê-lo num espaço plano e mais largo onde coubesse toda e aquela casa terminava num ferro. Deu duas voltas sem parar e começou a ficar com medo. Decidiu aterrar no redondo. Mal o fez começou a escorregar. Aflita bateu as asas e ficou sem ar. Que lhe ia acontecer? Uma pedra, onde bateu com a cabeça, travou-lhe a descida.- Maria Mar, Maria Mar! Que fazes aqui?Uma forte bicada e uma voz zangada acordaram-na. Maria Mar? Deveria ser com ela. Quando nasceram a mãe, a Gaivota Maria, para distinguir as três filhas, baptizara-a a ela como Maria Mar (porque nascera mesmo à beira-mar) e às irmãs Maria Branca (porque os restos dos seus ovos se misturaram com a espuma que o mar trouxera até ao seu ninho) e Maria Sol (porque depois do calor dos pais o sol foi a primeira coisa que as aquecera).Maria Mar não percebeu o que lhe acontecera. Lembrava-se que ia pousar num ferro e de repente… Será que tinha adormecido? Não teve tempo para fazer qualquer esforço de se recordar. A mãe continuava a abaná-la.- Responde-me. O que estás a fazer aqui? Porque saíste da beira das tuas irmãs?- Eu só queria…- O que é tu querias? Perder-te? Não percebes que ainda não tens força para voos grandes?- Eu só queria chegar às casas muito altas para ver como eram as coisas para lá da praia…- Tens muito tempo para fazer isso e ainda muito para aprender. A tua casa é na praia e o teu passeio a beira-mar. É por lá que tens de começar. Se caísses aqui poderias morrer. Vamos embora.Com alguma dificuldade, porque ainda estava meia tonta, Maria Mar levantou-se. A mãe deu-lhe mais uma bicada e estendeu-lhe uma asa para a ajudar a levantar voo. Suavemente arrancaram em direcção à praia. E se a mãe ia sorrindo lembrando-se de um dia em que, há muitos anos atrás, também se escapara para descobrir o mundo, a filha, apesar do susto, sorria também pensando na inveja com que as irmãs iriam ficar quando lhes contasse a sua aventura.Naquela noite, enquanto as filhas e o resto da colónia dormiam, a Gaivota Maria e o marido, o Manel Gaivota (o Manel viera de uma praia mais a sul, parece que da Foz e tinha-a conhecido à entrada da barra quando ambos procuravam comida a bordo de uma traineira), conversaram até bem tarde. A ousadia da pequena gaivota assustara-os. Decidiram, então, que logo que elas tivessem mais força, a mãe, que como elas nascera naquele areal e por isso conhecia bem aquela terra, as levaria com ela para lhes ensinar todos os sítios e contar-lhes todas as suas histórias.

Igreja do Bom Jesus de Matosinhos

A GAIVOTA E O BOM JESUS
A gaivota planou sobre o telhado da igreja e aterrou no alto da torre. Sentiu o ar fresco da manhã que lhe arrepiou as penas e preparou-se para localizar os sítios onde se tinham passado todas as histórias que a mãe lhe contara. Eram histórias muito antigas do tempo em que naquela terra havia poucos homens e um rio que corria lentamente entre as duas margens guarnecidas de árvores frondosas. Agora havia muitas casas, muitos barcos, muito movimento. Iria ser muito difícil identificar os locais de todas as histórias apesar de se encontrar num ponto alto. A mãe levara-a muitas vezes ali. Dizia ela que aquele sítio era o mais importante de toda aquela terra porque a torre pertencia a uma igreja onde havia um Cristo muito especial, tão especial que chegara por mar à praia de Matosinhos e a sua fama fora levada até muito longe. A gaivota aninhou-se, fechou os olhos e, como num sonho, pareceu-lhe ouvir a voz da mãe:Quando Portugal acabara de nascer havia uma terra chamada Bouças que tinha uma praia muito grande de belas areias douradas. Um dia os homens-lavradores do lugar, que recolhiam lenha que as marés traziam, encontraram um estranho madeiro com forma humana, pregado numa cruz, mas sem um braço. Espantados, levaram-no para a sua igreja que ficava um pouco afastada do mar. Porque aparecera naquela terra, chamaram-lhe Bom Jesus de Bouças e ali o guardaram e rezaram à sua sombra. A sua fé nesse Cristo foi tanta, que foram recompensados anos depois, quando uma nova maré lhes trouxe o braço perdido e que eles nunca tinham conseguido substituir.Com o tempo, os homens começaram a descer a encosta daquela terra e a aproximarem-se mais da praia. Foram deixando de ser lavradores e passaram a ser pescadores. Construíram casas nas margens do rio e ali iniciaram uma nova vida e uma nova povoação. A velha igreja, em ruínas, foi abandonada, mas eles levaram o seu Cristo para uma outra igreja, que fora construída pela Universidade de Coimbra, a verdadeira dona daquela terra. E como esta se chamava Matosinhos, o Cristo passou então a ser conhecido por Bom Jesus de Matosinhos.E os homens-pescadores começaram também a ser vendedores de peixe. E depois construíram barcos. E Matosinhos cresceu de tamanho e importância. Agradecidos ao seu Bom Jesus, por tudo quanto lhes dera, os homens organizaram uma confraria para se protegerem e escolheram-no para padroeiro. Era um tempo em que os homens daquele país se começavam a aventurar pelo mar desconhecido e realizavam longas viagens durante as quais iam descobrindo muitas terras de que ninguém conhecia a existência. Essas viagens, feitas em barcos muito frágeis, eram muito perigosas e os homens tinham muitos medos. Por isso rezavam e pediam ao Bom Jesus de Matosinhos que os trouxesse de volta sãos e salvos para casa. E o Bom Jesus protegeu-os tanto que a sua fama se estendeu por todo o país e chegou também até ao outro lado do oceano Atlântico – ao Brasil, que era uma região muito rica. Para espalhar a bondade daquele Cristo e os milagres que ele fazia, um enviado da confraria embarcou para esse novo mundo. E assim muito mais gente lhe rezou e recebeu favores. Em sinal de agradecimento, os novos fiéis entregaram a esse mensageiro muito dinheiro para que em Matosinhos fosse possível construir uma igreja maior e mais rica do que a anterior. E para o terem mais perto e assim melhor o venerarem, a pouco e pouco os fiéis brasileiros foram-lhe levantando novas igrejas em alguns lugares desse enorme Brasil. Ao todo 26.E a gaivota lembrava-se que a mãe terminava aquela história dizendo sempre:Este Cristo de Matosinhos, que apareceu sem um braço, conseguiu reunir num abraço dois países de dois lados do mar.A gaivota ergueu-se, sacudiu as penas, levantou voo, atravessou a cidade e pousou devagarinho na praia onde sempre vivera, a mesma onde o Bom Jesus aparecera quando este país acabara de nascer.